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Moda: Noel Rosa e MILE LAB tinham razão

A moda e a música andam de mãos dadas, seja nas passarelas ou nas ruas. Em entrevista, Milena Nascimento conta com que roupa ela vai

Pesquiso no google pela letra completa de uma das músicas do Noel Rosa “Com Que Roupa?” para iniciar o texto desta matéria. A moda como já sabemos tem a responsabilidade de mudar comportamentos e transformar o mercado visual, mesmo que por vezes escutamos falar sobre ela como se fosse algo fútil, é uma grande criadora de tendências, detentora de um poder para revolucionar uma geração ou um gênero por diversas décadas, é só lembrar de Coco Chanel.

Quando cito Noel Rosa, é preciso relembrar que na sua música, que foi o seu primeiro sucesso, gravada em 1930, ele diz que irá mudar a sua conduta e agora vai a luta, com isso, uma das suas dúvidas é qual a roupa que irá acompanhá-lo nessa nova fase.

A importância de o que se veste, como se veste e para quem se veste dá mesmo uma letra de samba… Até porque isso irá dizer muito sobre os olhares que iremos receber nos dias atuais, carregados de preconceitos antigos. Assim como alguns estilos musicais são marginalizados junto do conceito dos figurinos criados através dos artistas

A roupa que você usa no dia a dia te deixaria passar em uma entrevista de emprego?

Sabemos que alguns espaços possuem os seus símbolos de condutas, como igrejas, casamentos, escolas e ambientes de trabalho. Mas e quando qualquer acessório, peça de roupa, gosto musical e talvez o seu andar pode te excluir ou te isolar de certos ambientes? Pior ainda, pode fazer com que o seu lugar de origem seja marginalizado e demarcado como inferior por pessoas que nem sequer o conhecem, mas sabem identificar  quando uma ideia gerada naquele ambiente pode gerar lucro.

É daí que nascem surpresas e novas histórias para contar e o melhor de tudo é que dessa vez quem está com o lápis para escrever a narrativa, ou melhor, a linha e a agulha, sabe muito bem o que está falando. Pensar fora da caixa é uma frase estampada em vários vídeos de autoajuda, coach e de empreendedorismo, mas o que mais fazemos no dia a dia é embalar as pessoas somente com o que o nosso olhar captou delas em poucos segundos de observação, percebemos assim que na verdade, quando saímos da caixa é porque alguém fez muita força e teve muita coragem para se mostrar, nos obrigando a meter o pé de lá. 

Desfile MILE LAB – FLUXO MILENAR [Foto: Glamour]

“O grande propósito da MILE LAB é mostrar que estamos vivos”, diz Milena Nascimento.

Dia 20 de novembro de 2021, dia da consciência negra, como uma palavra que sai do superlativo e despenca no diminutivo, os passos largos com salto agulha na passarela viraram passinhos e dançaram ao som do beat do funk. Um desfile que transformou a ancestralidade em referência e mostrou que o funk ostentação, o rap cheio de marcas de grifes, o trap das viagens e carros, esses sons, possuem artistas que não estão apenas vendendo marcas, estão querendo ressignificar o que você pensa de uma cultura, de um povo e melhor ainda de uma comunidade.  

Em uma entrevista exclusiva ao Portal Rap Dab, Milena do Nascimento Lima, paulistana, que sonhava em ser estilista desde os seus 18 anos, hoje, aos 22 anos conta um pouco da sua caminhada até colocar os pés em uma das passarelas mais conceituais no mundo da moda. 

“A primeira oportunidade de entrar no mercado fashion foi como Camareira na SPFW, passando roupa e vestindo modelos. Foi uma fase muito importante para que eu compreendesse como funcionava aquele mundo, e o que representava meu corpo nesses espaços.”

A MODADA DE MILE LAB: O FLVXO MILENAR

Milena Nascimento, fundadora da MILE LAB trouxe a comunidade do Grajaú costurada em sua linha e a arrastando pela passarela mais importante do Brasil e uma das mais requisitadas no mundo da moda, através do projeto Sankofa  para participar da SPFW

Assim como a MILE LAB, existem muitos projetos de jovens pelo país que só precisam de uma oportunidade e visibilidade para que sejam descobertas diversas potências em arte e produções perdidas e silenciadas no Brasil. Há muito papel já rabiscado com projetos, letras de músicas e desenhos que podem ser a nova sensação da moda dos próximos tempos e o que não falta em nosso país para os artistas, é inspiração. 

“O que me inspira é o corre de cada dia, é o milagre de todas as manhãs a favela está erguida, mesmo com todas as atribulações. É compreendendo a história desse lugar que não é contada nos livros, nem nas escolas. A favela é pura poesia, e cada verso dela me dá fôlego para fazer o corre acontecer.”

É observado nas peças da etiqueta MILE LAB algo que vimos muito em núcleos específicos de novelas, mas sempre com um tom de caricatura como se aquela vestimenta não fosse uma grande representação de identidade de uma parcela da população que vem sendo massacrada e segue fazendo arte, muitas vezes, da dor que sente na pele.

A música de Noel Rosa só pergunta com que roupa se vai porque desde aquela época já havia essa consciência da importância da vestimenta e que foi mostrada no samba de asfalto do qual ele contribuiu a elevar em um grande patamar no Brasil. Hoje em dia o asfalto se destaca por mais estilos musicais, por crianças coreografando para TikTok, ao som de funk, rap, trap entre outros ritmos que vem ganhando notoriedade pela população e – finalmente – pelo mercado, que faz com que a remuneração e reconhecimento chegue finalmente na maior massa populacional e cultural do país, o que dá mais capacidade para as comunidades. 

“Isso só fortalece a mensagem do quanto nós, que somos de quebrada, que produzimos música, moda, ou qualquer outro viés artístico, somos potências culturais e econômicas em sua essência.”

Desfile MILE LAB – FLUXO MILENAR [Foto: Glamour]

SOM NA PASSARELA QUE LÁ VEM ELA…

O poder expressado através de roupas, acessórios e muito do que é visto em passarelas brasileiras e da gringa, por mais que tentem retirar ou distorcer, sempre foi um local de autoridade e de autoafirmação nas favelas. Imagens que geralmente são copiadas e elevadas a quinta potência em valores de grife, as colocando em lugares onde quem realmente cria e representa essas expressões, não mais consegue adquirir quando a identidade se torna produto. 

Esses materiais saem das comunidades e ganham espaço em vitrines muito distantes da periferia e para o consumo das pessoas que foram o motivo de inspiração para a produção. Já que a arte por vezes se esconde, não da vista das pessoas, mas da possibilidade de ser tocada e vivida e as peças – de roupas, artes plásticas, entre outras – não ficam atrás de uma barreira apenas em museus, mas também conforme elas são transformadas em algo usual da rotina. Ao criar bloqueios através de preços e não do valor, também são criadas barreiras, são colocados muros para ideias que ainda não conquistaram uma posição de cifras financeiras, mas que precisa de apenas um olhar e crença de quem gostaria de consumir e investir. 

“Não houve uma porta aberta para que fizéssemos o desfile, mas sim uma viela, um beco bem apertado que tivemos que passar pra realizar tudo isso.E graças ao nosso cotidiano, a gente sempre soube andar em viela e fazer o melhor com o pouco que temos.”

Desfile MILE LAB – FLUXO MILENAR [Foto: Amanda Rodrigues]
Tá na moda representar?

“E isso faz a gente se questionar se realmente querem ter pluralidade e diversidade dentro desses espaços, se eles não fazem o mínimo para garantir nossa permanência neles. É como sempre digo, o único objetivo é apenas conseguir o seu selo antirracista e exibir em redes sociais.”

DESFILE DE MODA PARA O POVO

Em outubro do ano passado, o rapper FROSTT  lançou o som “Loiro Pivete”, na faixa, ele conta sobre o comportamento que ocorre todos os finais de ano, entre os  meninos nas periferias ao descolorir os cabelos. Isso demonstra o mix de cultura não só na imagem, mas também na representação que vazou das comunidades e ganhou o hype, já que vimos diversos influencers e TikTokers aderindo ao “nevou”, termo usado para o clareamento dos cabelos.

E sendo um exemplo de quem entende a realidade da música e a função da arte em lugares que gritam e são sempre os últimos a serem escutados, o artista FROSTT promoveu um dia de “descoloração” gratuita para os fãs que já queriam inovar no visual e de quebra fortalecer  a imagem do som, também a barbearia onde liberou o serviços ao seu custo.

Uma excelente jogada de marketing dentro do lugar que foi a audiência dos seus primeiros passos, já que o seu som, além de representar a favela, retorna com o dinheiro para o lugar que inspirou para a criação.     

E a Geração Z sabe muito bem como pegar peças, acessórios, cortes e tinturas de cabelo e transformar isso em estilo de vida, viralizando em fotos e vídeos em redes sociais e criando novos comportamentos, eis que chega o estilo “Mandrake”

“O estilo Mandrake como por exemplo, é uma ferramenta que atravessa a relação com a estética, e diz mais respeito a caminhada, a vivência de uma pessoa na quebrada. É através de se reconhecer nesse estilo e nessas batidas, que muitas pessoas retomam sua autoestima, seu amor próprio e o sentimento de pertencimento que tanto faz falta em nossas vidas, quando com isso, nos reconhecemos no outro”.

Mas como nem tudo são flores ou vira números na internet, esse estilo também sofre muito preconceito antes de “viralizar”, seus traços que nascem e são vistos nos bailes da periferia e antes de tomar gosto pelo hype é criticado pelo sistema. 

“O sistema age de uma forma, que tudo que é gerado pelo favelado, consequentemente vai ser assemelhado com o crime, com má conduta, com desrespeito ao outro. E com isso se perpetua o poder de justificar o preconceito, o racismo e a violência sobre corpos e suas estéticas marginalizadas.”

A FAVELA É CRIADORA, CRIATURAS!
Um passo na frente do outro em linha reta, livros em cima da cabeça, queixo mirando no alto e sem balançar os braços, dessa forma a maioria dos leigos – me incluo – imaginam como deve ser a etiqueta para desfiles de moda e a sua preparação para uma apresentação na passarela.  Porém, eis que o funk, o tamborzão, faz com que os modelos quebrem o quadril, levantem os braços, abaixam levemente os joelhos e fazem a pistolinha com as mãos – por favor não compare essa arminha com a de você sabe quem -, ou seja, o funk desmonta a rigidez dos corpos, da movimento, da timbre e manda tudo para o ar com uma sarrada.  

Pessoas pretas levando a sua cultura e a sua história para movimentos e espaços artísticos de representação é urgente no Brasil, esses movimentos populares crescem no país, mas ainda assim não é sempre que trazem junto deles os personagens principais de quem teceu grande parte do trabalho de construção do país e até hoje não conheceu o camarote para assistir a desfiles como os do SPFW ou muito menos fez parte da produção. 

Vale ressaltar o carnaval, grande tradição brasileira que em um único período do ano podemos ver o show de criatividade, arte e inspiração que as comunidades  – principalmente – do Rio de Janeiro e São Paulo trazem nas avenidas. Onde são coroadas produções, estilistas e demais artistas que não devem apenas ser valorizados em um mês ao longo do ano todo, mas evidenciados por seus talentos e mostrados para um mercado ainda excludente e central nas capitais.

“Pois acredito que para além de um artista preto, periférico na frente das câmeras ou uma modelo de quebrada estampando uma matéria, é necessário e extremamente urgente que tenhamos o nosso povo na produção, na direção e execução desses espaços. Pois só o nosso olhar pode de fato transformar a perspectiva da indústria, seja ela na música ou na moda.”

E FALANDO EM AR

Os materiais de produção de pipas foram base para o desfile da MILE LAB no SPFW que trouxe mais do que moda para o high society que com juliet, cropped, camiseta amarrada ao rosto (estilo balaclava), linha e pipa nas costas quase como um flecha.

O desfile voou e fez com que a dureza das passarelas tocasse o ar, dar linha na pipa  e passar o cerol na mão, parece ter marcado os olhares para que um novo show chegue em todos os anos. Milena acertou, enxergou o que sempre esteve ao seu redor e evidenciou o que uma parcela social tenta esconder. 

Sobre suas inspirações e artistas que acompanha no mundo musical, Milena lembra de Kyan, um grande fenômeno do funk e rap: 

“Kyan é um gênio, e carrega uma responsa muito grande de inspirar outros moleques e a forma em como ele faz isso, me encanta, mexe muito comigo. A verdade que ele traz em cada letra,  tem um poder que nada que eu diga possa mensurar isso. É revolução pura!”

Lembrou também das irmãs Tasha & Tracie que são um sucesso com as suas músicas e influenciam muito a Geração Z com seu estilo:

“A Tasha e a Tracie tem um impacto tão gigante na minha vida enquanto uma Mulher Preta Independente de Favela, que me motiva e me ajuda a fazer meu corre todo santo dia. E elas tem uma importância muito grande na minha vida, foi através do som delas que eu e minha mulher conseguimos passar por uma crise. A potência dessas minas fez com que nós duas encontrássemos força para seguir juntas e firme. E logo iremos nos casar”.

Da arte nascem vários frutos que geram roupas, coleções, etiquetas, músicas e casamentos. Descobre-se com que roupa se vai, com que ideia se vai e o que está faltando para o Brasil entrar em um compasso mais amoroso

No mesmo ritmo e em diferentes gerações, Noel Rosa e Milena Nascimento podiam estar falando de objetos diferentes quando traçaram as suas linhas no papel, dessa forma mexeram em uma mesma estrutura

Apesar de todo o palco, flashs e passarelas iluminadas, Milena expõe em suas falas a seu conhecimento do vem pelo seu caminho, ainda há muitas portas para serem abertas e representatividades para serem acionadas, o primeiro passo já foi dado, um atrás do outro com o olhar para frente, voando igual pipa e cortando feito cerol. Assista ao desfile!

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Ana Carla Dias

Jornalismo e Direção de Arte

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