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“Nem Todo Filho Vinga”, mas o da Maré vingou!

A diretora carioca Renata Tavares recebeu o Prêmio Shell de Teatro. A história do jovem negro periférico levou o troféu para a comunidade

A peça dramaturga “Nem Todo Filho Vinga” da Cia Cria Baco rendeu à Renata Tavares, 44, o Prêmio Shell de Teatro na categoria Direção, em uma cerimônia ocorrida no Teatro Riachuelo (RJ) no dia 21 de março. A obra traz para os palcos o que é vivido por trás das cortinas de teatro quando as palmas se cessam, ali é onde é feita a história, uma jornada repleta de símbolos e de muita luta.

Renata é multiartista, atriz, arte-educadora, dramaturga, encenadora e cantora. Formada pela (ETET) Escola de Teatro Martins Penna do Rio de Janeiro, a escola pública de teatro mais antiga da América Latina, também está completando a licenciatura em  Artes Cênicas na UNIRIO, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Estreou no espetáculo “Nem Todo Filho VInga” em 2022, a peça também foi indicada na categoria “ENERGIA QUE VEM DA GENTE”, onde são premiadas histórias que possuem iniciativas sociais transformadoras.

Quando entrou pela primeira em um teatro, Renata tinha apenas 18 anos, dali em diante nunca mais parou de estudar, essencialmente é atriz por formação, mas as necessidades da vida a fizeram ampliar o seus afazeres profissionais, hoje, o que é um diferencial em seu  currículo foi formado através de muita luta.

“Ser indicada era algo que não passava pela minha cabeça, porque das 33 edições do prêmio, havia uma atriz negra e já tem dez anos que ela ganhou,  isso é muito sintomático, né? Esse ano foi de fato o que teve mais diversidade, estavam presentes pessoas trans e pessoas pretas indicadas. Teve um movimento de transformação e de percepção desses lugares, de não bater esse teatro elitizado e europeu, não é sobre isso que queremos falar, isso nunca nos representou”, diz Renata.

Moradora da Zona Oeste do Rio de Janeiro, ela enxerga o quanto há potência em sua comunidade e quanto de desejos e anseios estão principalmente nos mais novos que a circulam, “Moro em uma periferia onde as coisas são muito desejadas, o tênis, o sucesso. Quero que os meninos e meninas da favela, mesmo os que não possuam uma boa estrutura, saibam que apesar de não ser fácil vencer é muito prazeroso quando se vence. E, talvez esse seja o meu legado e dos outros coordenadores do projeto,  fazer com esses jovens tenham apreço por serem vencedores independente da profissão”.

O PRÊMIO SHELL

O Prêmio Shell de Teatro se tornou uma das grandes referências da arte brasileira nas últimas três décadas, acompanhando as mudanças do fazer teatral e testemunhou a chegada de novos grupos e talentos aos palcos brasileiros.

Em sua primeira versão, eram premiados autores, diretores, atores, atrizes, cenografistas e categoria Especial. Mas com o tempo, a lista de indicados adquiriu  novas funções, como figurinistas (1989), iluminação (1992) e música (1996).

Em 2014, foi implementada a categoria Inovação, onde se concentram  todos os espetáculos, textos, grupos ou profissionais de teatro que apresentaram trabalhos ousados e com impacto social positivo, mas em 2022, essa categoria passou a se chamar “Energia que vem da gente”, onde a peça “Nem Todo Filho Vinga” também foi indicada, mas o prêmio foi para o  “Coletivo 302”, que contou a história de ancestralidade em Cubatão, na baixada santista.

“O projeto faz com que eu me sinta pertencente a esse mundo excludente”, essa é visão de Camila Moura, 28, uma das atrizes da peça, ela conta que chegou a passar mal ao saber das indicações ao prêmio Shell, “Foi uma grande resposta porque a gente trabalha muito, o teatro é uma profissão que estamos sempre em um trabalho coletivo, ali tem a força de muitas mãos”

Após o reconhecimento pelo prêmio, Renata sabe que novas portas podem se abrir, mas descreve esse momento como delicado, “A gente sabe que  dinheiro está nas mãos de quem é branco, da produções brancas, de uma panela”, sobre o prêmio e a notoriedade da produção, ela conta que passa a ser enxergada, principalmente por quem sonha em viver da arte futuramente, os meninos e jovens da comunidade já tem referência desse lugar, “Pensando nesse prêmio, o que eu tenho de muito consistente é que quando eu for procurada, será para atender um nicho, sobre o que eles querem que eu fale. Na minha vida sempre trabalhei muito, sou uma oficineira, então nunca tive deslumbre de ser uma atriz e ser uma encenadora, o meu lance é varrer chão, esse ato faz parte da manufatura do teatro de estar presente em todos os lugares, pensar junto e entender tudo aquilo”.

NEM TODO FILHO VINGA

“Após passar para a Faculdade de Direito na UFRJ, Maicon, um jovem negro e cria da favela da Maré, passa a confrontar os ideais de justiça do Estado Brasileiro diante dos inúmeros eventos de injustiça que ele e seu grupo de amigos vivem diariamente”, Sinopse da peça “Nem Todo Filho Vinga”.

A peça “Nem Todo Filho Vinga” surgiu do projeto “Entre Lugares Maré“, a partir desses jovens que já desejavam a participação no festival, mas queriam contar uma história com a qual se identificasse, já que as dramaturgias conhecidas por eles pouco as representavam, “Sobre jovens universitários e favelados, também as questões de gênero, gravides precoce e o  descaso do Estado com as favelas”, conta Renata.

A falta de políticas públicas para espaços periféricos faz com que alguns problemas só cresçam, são muitas vozes talentosas precisando de atenção, muitas mães criando famílias sozinhas, sem rede de apoio para buscar melhores empregos. Potências incríveis e mentes brilhantes impedidas de apresentar ao mundo o seu talento, “A peça é um grito de esperança, um grito de fortalecimento para quem é preto e um grito antirracista para quem é branco. […] São muitas as mães que precisam cuidar do filho de outras pessoas para botar comida na mesa, porque são mães solos, então isso é um problema social, mas a gente acredita no poder da arte, assim como no esporte também tem o poder de transformação, o que fazemos é pensar e pensar e olhar essas pessoas que não são vistas”

O espetáculo é encenado pelos atores e atrizes Anderson Oli, Camila Moura, Jefferson Melo, Natália Brambila, Ramires Rodrigues, Yuri Domingues e Zaratustra, formado pela Companhia Cria do Beco, localizada na favela da Maré, onde criaram juntos um enredo identitário e com muita e que chamou atenção do público com histórias que poderiam e na maioria das vezes são reais.

UM PROJETO DE VIDA!

O enredo da peça nasceu do próprio elenco, a princípio surgiu como uma esquete durante a realização do projeto social no Complexo da Maré o “Entre Lugares Maré”, localizado no Museu da Maré, um trabalho de imersão cultural para os  jovens de favela, onde  aprendem a encenar, dirigir, pensar figurino, musicalidade, dança e muitas formas de expressão. 

Anderson Oli, 29, é de João Pessoa (Paraíba), hoje, mora na comunidade da Maré, Rio de Janeiro, e é um dos atores da peça, o nordestino se interessou por arte ainda bem pequeno, e diz que o sonho da profissão sempre anda junto com a incerteza. Para ele, a peça criada pelo grupo foi feita para enxergar sem se limitar,  “Criamos estratégias para montar esse espetáculo e para falar às nossas questões e vontades, essa é a grande importância desse projeto na minha vida, onde me encontro no teatro e penso que ele é uma possibilidade para mim também. já que em determinado momentos da minha vida, não me reconhecia naquele espaço. A gente pensa em teatro e já vem em nossa mente o Shakespeare e a Europa, mas a gente mora aqui na favela que também tem o teatro, fazemos teatro também”.

OLHAR CULTURAL

Na corrida por fomentar a arte e ampliar programas culturais, muitas vezes o que chega para essas regiões são projetos financiados por empresas privadas e, algo que parece ser uma oportunidade, pode gerar desconfiança sobre os interesses que possam estar por trás de determinadas presenças. 

A baixa atenção do Estado sobre os projetos culturais nas periferias e favelas é nítida, isso em todo o país. Renata, que mora onde o filho vingou, enxerga diariamente obstáculos que até mesmo o planejamento urbano entre a periferia e a arte, “Não há algo efetivo! Moro em Bangu (Zona Oeste) e lá da minha região até o Complexo da Maré são 32 quilômetros, então há 11 anos faço esse caminho de ida e volta para dar aula em diferentes lugares. Fora a dificuldade no acesso aos teatros que são longe, no centro da cidade, nos bairros da Gávea e Copacabana”

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Para os próximos planos, um deles é uma peça musical, uma opereta que se chama ‘Das Dores’, projeto que será realizado através de um edital do SESC. Renata é um daqueles nomes que todos os pais, mães, irmãos e responsáveis deveriam conhecer, ter esse exemplo guardado na manga e poder tirá-lo como mágica para contar uma história, “O sonho, para que todo filho vingue, seria que todos os meninos e meninas da periferia e das favelas, pudessem ter acesso a alimentação, segundamente a saúde e depois a educação. Não tem como você querer que o filho vingue se você não tem esses 3 pilares na vida”.

Para quem não assistiu a peça, ela voltará a ser exibida em junho, no Rio de Janeiro, mostrando a história de quem sonha, dos que vingam e são indicados a premiações. Já que no coração dos pais e diretores de teatro, todos os filhos vingaram,  e está vindo uma gigante Maré do Rio de Janeiro com essa vontade de vingar.

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Ana Carla Dias

Jornalismo e Direção de Arte

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